20 outubro, 2012

"Valeis muito mais que os passarinhos do ar"



Os meus pais:

Os meus pais vieram de Moçambique para Portugal depois da Independência. Não queriam, mas a situação tornou-se impraticável e acabaram por vir. A contra-gosto, o meu pai teve de se despedir da sua terra. Diz que nunca mais quer lá voltar porque o que ele conheceu já não existe. É bem capaz de ter razão: os amigos, a juventude, as cidades modernas, já não existem. A minha mãe deixou uma vida muito confortável e uma herança grande. Paciência.
Chegaram cá sem nada. Perderam casa, trabalho, contactos, calor. Ficou lá tudo. Mais tarde conseguiram trazer num contentor o carro e alguns objectos. Puderam contar com a generosidade de alguma parte da família, mas tempos difíceis revelam o melhor e o pior de todos nós.
E nasci eu, contra todas as expectativas, na pior altura, quando não havia garantia de nada: emprego não havia, a saúde da minha mãe era instável, casa também não. Vendeu-se a única coisa que a minha tinha herdado para se comprar uma casinha nos subúrbios de Lisboa. E por lá ficámos.
Entre os meus pais houve um acordo: assim que possível, iam estudar. Primeiro foi o meu pai: depois de 16 anos sem o fazer, resolveu propor-se a um exame ad-hoc para ingresso nas Belas Artes de Lisboa e entre centenas de candidatos, ele foi um dos 2 que conseguiram passar. Escolheu Design de Comunicação e fez o curso de uma assentada em 5 anos e com uma média de 14, 3 filhas, um trabalho, a apanhar transportes públicos e uma mulher diabética. Para ajudar, deixou de fumar. Chegara então a vez da minha mãe: o percurso dela foi mais longo, fez do 10º ao 12º ano à noite, depois do trabalho e entrou para Direito no exacto ano em que a minha irmã mais velha morreu. Esse foi um grande abalo, mas não nos derrubou. A vida continua. O curso era para tirar em 5 anos e foi em 5 anos concluído. As coisas melhoraram, foram cicatrizando sempre em luta. Desistir não é opção. Falta de dinheiro não é impedimento: sempre vi o meu pai com 2 e 3 empregos, mais a pintura, mais as aulas de pintura ao fim-de-semana. Lá em casa, os fins-de-semana eram para trabalhar, mas no que se gosta realmente. Conseguimos fazer uns belos passeios pela Europa ocidental, de carro, com tenda, com latas de atum e mochilas às costas: mas conseguimos ver o Louvre e a Escócia e a Basílica de São Pedro em Roma e a National Gallery em Londres e mergulhar no Mediterrâneo e ir ao Café La Nuit em Arles... Nunca estive num hotel de cinco estrelas, ou com piscina, mas estive num lago à beira dos Pirinéus de onde se via a neve nas montanhas em Agosto.
Uns anos depois tivemos uma espada apontada à cabeça dos quatro: a minha mãe teve um cancro, do qual está livre há 4 anos. Foi muito difícil cortar-lhe o cabelo depois do 1º tratamento de quimioterapia, mas vê-la a ir trabalhar todos os dias e a levantar-se todos os dias para dar de comer aos cães manteve-nos a certeza de que ia sair viva desta.
E os cães? Apareceram por acaso e foram multiplicando-se. Toda a gente diz que é uma loucura alimentar tantos cães (mais de 30) num canil, sem apoios nenhuns.
A vida agora está mais difícil: perdeu-se 1/3 das fontes de rendimento e os meus pais já não têm energia para 2 e 3 empregos. Mas todos os dias, eles levantam-se ainda de noite para ir tratar do canil, para dar de comer aos seus cães e gatos e ninguém fica com fome.
Também ninguém percebe por que é que eles mantém esta loucura: podiam enfiar os cães todos nos canis municipais, mas se vocês conhecessem os meus pais, saberiam que eles não desistem de nada e assumem sempre as suas responsabilidades. E esta é a responsabilidade deles.
Não, não vão passar férias a Benidorm, nem vão ao cinema nem jantar fora. Continuam a trabalhar, a levantar-se de noite para dar de comer aos bichos, e a jantar às onze da noite porque só comem depois de tratarem deles.
São assim. E a única coisa que eu lhes posso fazer é ajudar. Às vezes falta dinheiro para acabar o mês, outras vezes a minha mãe namora um vestido que não pode comprar, outras é o carro que falha: é onde eu entro, para completar as falhas, para lhes por a mão por baixo, outras por cima do ombro para os sossegar.
Em Janeiro vou ficar sem emprego. Mas com a herança que estes dois me deixaram, não vou ficar sem trabalho.
Não lhes há-de faltar nada. Nem a eles, nem aos cães. Porque a mim, nunca me faltou nada. Nem há-de faltar.

4 comentários:

angela* (´H´ is for Happiness-photo) disse...

Muito bonita e corajosa a vossa história. És muito talentosa, se em Portugal não houver janelas, o resto do mundo tem várias portas e janelas abertas. Por vezes, vale mesmo a pena voar...
bjinhs
Já acompanho o teu blog e trabalho há vários anos, penso que é a primeira vez que comento. Continua a lutar... :)

do not push my buttons! disse...

Olá Angela :)

Muito obrigada por ir lendo este blogue. Às vezes está mais para "Querido Diário", mas fico muito contente por afinal ser lido por alguém.
Sim, há sempre saída: se não é pela porta, é pela janela, é pelo telhado, é pelo buraco da fechadura ;)
Um abraço!

Unknown disse...

Olá Luísa. Sou a Sofia do crochetgourmet (agora linhas do avesso). Estou a comentar mas não sei bem o que dizer. Senti apenas esta necessidade de te mostrar que há gente deste lado. E que, quando se é lutadora como tu és e como a tua família é, tudo correrá pelo melhor!
beijinhos

do not push my buttons! disse...

Olá Sofia!
Fico muito contente por continuares a visitar o meu blogue!
Sim, temos de ser lutadores. Por algum motivo estamos neste mundo e não podemos desperdiçar a oportunidade.
Como toda a gente, de vez em quando, duvido das minhas capacidades, fico com medo do que vai ser de nós, e por isso, escrevo estes posts, para colocar tudo em perspectiva, para racionalizar o que sou.
É assim. :)